A tecnologia não é um destino inevitável. A educação deve orientar a sua integração com pensamento crítico, participação e visão de futuro.
As crianças devem aprender a programar desde cedo, de uma forma lúdica que se adapte ao seu desenvolvimento e vá avaliando a sua preparação para a tecnologia – mesmo sem ecrãs, através de experiências físicas com blocos ou cartões.
A pergunta da criança — “Porque é que tenho de ir para a escola?” — é legítima e necessária. Revela a urgência de repensar o modelo educativo: torná-lo mais relevante, interessante, cativante e verdadeiramente centrado no desenvolvimento humano.
Fala-se muito da IA como ameaça, mas o verdadeiro desafio está menos nas capacidades da tecnologia e mais nas decisões humanas sobre a sua integração. A educação não deve apenas adaptar-se à era pós-digital — precisa de ser redesenhada com base em valores humanos e na escuta ativa das novas gerações.
A tecnologia não é um destino inevitável. A educação deve orientar a sua integração com pensamento crítico, participação e visão de futuro.
Foi essa a essência da minha intervenção na mesa-redonda “Educação”, na conferência “Ser humano na era da inteligência artificial: Desafios da coexistência”, organizada pela Universidade Católica Portuguesa: ouvir crianças e jovens, envolvê-los na criação tecnológica e refletir com eles sobre o futuro que precisamos de desenhar. As suas vozes não podem ser um adereço tardio — são essenciais na construção de tecnologias verdadeiramente centradas no humano.

© Imagem de cortesia
“A inteligência humana nada tem de simples.” — Damásio
No livro “Sentir & Saber”, António Damásio descreve a inteligência humana como um fenómeno profundamente complexo, enraizado na integração entre corpo e mente, onde emoções, sentimentos, percepção, consciência e memória têm um papel central na formação do raciocínio.
Num tempo de transformação digital acelerada, a inteligência artificial representa promessa e desafio para a educação. É precisamente quando as máquinas ganham presença que devemos centrar o ensino naquilo que nos torna humanos: a riqueza emocional, criativa e crítica da nossa inteligência.
Educar para o futuro não é focar apenas no desempenho das competências técnicas ou na memorização, mas em preparar as novas gerações para viver com — e não sob — a tecnologia. Promover empatia, pensamento crítico, ética, consciência de si e do outro e inovação é essencial para garantir uma relação saudável, justa e humana com as novas tecnologias.
Defendo uma abordagem de design centrado na criança, onde a tecnologia é uma ferramenta — não um fim em si — que potencia o desenvolvimento cognitivo e a expressão individual. Do lado da concepção e criação da tecnologia as equipas de desenvolvimento devem ser diversas e multi-culturais. Devem perguntar-se: compreendemos verdadeiramente o impacto do que estamos a criar? Sabemos como isso molda o quotidiano, as emoções, as escolhas e até o sentido de identidade das crianças?
Quanto à escola e aos educadores o seu papel deve ser o de cultivar capacidades genuinamente humanas, promovendo processos co-criativos, personalizados e afetivamente significativos. Humanizar o ensino é, mais do que complementar a tecnologia, garantir vínculos emocionais, criatividade, competências sociais, empatia, pensamento crítico e responsabilidade social e coletiva.
A literacia digital e o pensamento computacional e algorítmico são competências fundamentais hoje em dia. As crianças devem aprender a programar desde cedo, de uma forma lúdica que se adapte ao seu desenvolvimento e vá avaliando a sua preparação para a tecnologia – mesmo sem ecrãs, através de experiências físicas com blocos ou cartões. Mais do que utilizar a tecnologia, é fundamental compreender como é que ela é construída. Precisamos de criadores activos, não de consumidores passivos.
As novas gerações nascem imersas na tecnologia — como peixes que não sabem o que é a água, metáfora muitas vezes evocada por Sir Ken Robinson. A tecnologia é o seu ambiente natural. No entanto, viver dentro dela não é o mesmo que entendê-la. É necessário capacitá-las a questionar, entender e agir com lucidez no ambiente digital.

Segundo a OCDE, a literacia digital envolve competências como encontrar, avaliar, criar e partilhar informação digital — mas também distinguir o verdadeiro do falso. A OCED destaca também a importância do capital cultural associado à literacia analógica, como o contacto com livros e suportes tradicionais. A literacia digital não substitui a tradicional, complementa-a. Hoje, a par da leitura e da escrita, ganha relevo a importância de saber falar — não apenas entre humanos, mas também na forma como interagimos com sistemas de IA. A oralidade e a capacidade de formular perguntas ganham relevância num mundo mediado por interfaces de conversação.
Para preparar as novas gerações, precisamos de uma abordagem integrada e crítica que inclua diversas literacias — digital, media, algorítmica, de propaganda — e, sobretudo, uma literacia crítica transversal que prepare para resistir à manipulação, perceber os mecanismos invisíveis do poder digital e enfrentar os enviesamentos da tecnologia e os algoritmos perversos e capitalistas com os quais já convivem, promovendo um uso informado da tecnologia. A escola deve ser esse espaço de treino da lucidez. Para isso, precisa de adultos preparados, informados e disponíveis para mediar, contextualizar e dialogar. Tudo isto exige um esforço sistémico coletivo: a reformulação dos currículos, das pedagogias, a formação de professores e profissionais do ensino, a criação de comunidades de prática e a sensibilização de toda a comunidade educativa.
Durante a conferência, alguém perguntou o que responder à filha que todos os dias questiona “Porque é que tenho de ir para a escola?”. A questão, do ponto de vista da criança, é válida — e sintomática de um modelo educativo desatualizado e desatento. A escola, tal como está estruturada, pode parecer, para muitos, uma perda de tempo e de oportunidades. Houve uma mudança de paradigma: no século passado, a escola era o caminho para a melhoria do status social, um acesso à profissão, realização pessoal. Hoje exige-se muito mais — mas a escola nem sempre está preparada, sobretudo perante desafios como a saúde mental ou o mau uso da tecnologia.

© Clara Vieira Rodrigues
A escola é (ou deveria ser) muito mais do que um lugar de transmissão de conhecimento. É um espaço de socialização, de construção de valores éticos e morais, de desenvolvimento emocional e de cidadania ativa. Para algumas crianças, é mesmo o único lugar onde essas experiências são possíveis. A interação entre pares potencia a aprendizagem, estimula o desenvolvimento emocional e a criatividade e prepara para a vida em sociedade. A pergunta da criança — “Porque é que tenho de ir para a escola?” — é legítima e necessária. Revela a urgência de repensar o modelo educativo: torná-lo mais relevante, interessante, cativante e verdadeiramente centrado no desenvolvimento humano. A escola precisa de voltar a ser um espaço de encontro, partilha e construção de sentido. Talvez devesse haver mais crianças e pais a fazerem a mesma pergunta — e deixá-la orientar as respostas que precisamos de construir.
Humanizar o ensino na era da inteligência artificial é preparar os alunos não só para um mundo tecnológico, mas para uma sociedade mais ética, consciente e resiliente. O futuro da educação exige aliar a inovação tecnológica ao valor insubstituível da conexão humana, promovendo uma aprendizagem integral e significativa.
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